O horário de inverno na Lapônia: setor elétrico não é um conto de fadas

Confira a íntegra do artigo assinado por Xisto Vieira Filho, presidente da Abraget, publicado no Valor de Energia, em 26 de setembro de 2024.

O horário de inverno na Lapônia: setor elétrico não é um conto de fadas

Presidente da Abraget defende que um sistema bem planejado é capaz de produzir menor impacto ambiental, máxima segurança e menor custo

Como é fato sabido, temos grande simpatia pelo sistema elétrico da Lapônia, em vista dos seus ensinamentos, além da alegria e da simplicidade técnica dos que militam naquele sistema.

Com efeito, recentemente verificou-se no sistema elétrico lapão, que tínhamos problemas de confiabilidade elétrica e energética. De imediato, foi convocada uma reunião de emergência do GPSEL (Grupo de Palpites do Sistema Elétrico da Lapônia). Prontamente, um dos participantes, o Mágico de Oz, apresentou um estudo que introduzia a necessidade de imediata implantação do Horário de Inverno, o que resultaria em uma economia de 253 Laps (dinheiro da lapônia, sendo 1 Lap=0,015 U$).

Após muitas discussões, concluiu-se que a economia de 253 Laps era pouca para alterar horários de bancos, programações turísticas em torno de Papai Noel, funcionamento das fábricas de brinquedo, etc.

Dois dias depois, o Mágico de Oz apresentou outro estudo. Dizia que a economia seria 3.000 Laps e não 253 Laps, pois tinha esquecido de contabilizar os equipamentos de segurança, que não seriam mais necessários, uma vez que a ponta do sistema lapão seria reduzida em 100 MW. Ato contínuo, chegou na reunião o Espantalho, diretamente da Terra de Oz, e complementou: “Opa, se atrasar 1 hora corta 100 MW de carga, vamos fazer o Horário de Inverno com 4 horas de atraso e economizar 400 MW. Em seguida, entrou um terceiro participante, bem mais estruturado, e fez algumas perguntas:

1. Mas um dos problemas é de confiabilidade elétrica, e a grande maioria dos blecautes no mundo ocorre na chamada “carga leve”, quando o sistema elétrico está mais fragilizado. Como explicar suas medidas?

2. Por outro lado, também estamos tendo problemas de suprimento de energia aqui na Lapônia, então como vocês querem dispensar equipamentos de segurança?

3. Por que vocês estão trazendo as coisas de forma distorcida para o GPSEL?

4. Por que o Leilão de Equipamentos de Segurança do Sistema Lapão não ocorre logo? Será que vocês estão ouvindo Esopo, conhecido “travador de leilões”?

Temos que tomar muito cuidado para não estarmos repetindo, no Brasil, equívocos do sistema da Lapônia. Lá o sistema funciona com auxílio das fadas; aqui, a operação é real.

As semelhanças ou influências vindas da terra de Papai Noel para o Brasil não cessam neste ponto. Estamos assistindo a uma difusão de informações que se servem de inverdades e disseminam, me permitam afirmar, um certo ódio contra as termelétricas. Cumprimos aqui o dever de prestar esclarecimentos aos leitores.

A primeira é a informação que diz que as térmicas são soluções de altíssimo custo. Flagrante engano. As termelétricas são despachadas quando seu custo é inferior ao da água. Além disso, quando são despachadas por razões de segurança elétrica, são muito mais baratas do que o custo do déficit. Vale recordar que, em 2014 e em 2021, foram as térmicas que livraram o país de um racionamento de energia. Sem elas, a solução seria obrigar consumidores – residenciais e industriais – a reduzir o consumo, com impactos na qualidade de vida e na economia?

A segunda questão é dizer que o acionamento das usinas desorganiza o planejamento. A resposta é simples: é exatamente o contrário. Serve para organizar o planejamento, colocando claramente em execução os critérios de confiabilidade definidos pelos poderes Executivo e Legislativo. É, aliás, o que tem sido feito, com respaldo de estudos técnicos do MME (Ministério de Minas e Energia).

Mais um ponto levantado pelos especialistas da Laponia é o de que as térmicas limitam a produção das renováveis. A resposta é a mesma: trata-se exatamente do contrário. As térmicas permitem a expansão de fontes renováveis, com segurança.

Para se ter ideia, um aumento de cerca de 200 MW de geração termelétrica na região de Fortaleza (CE) permitiria uma redução de “curtailment” (corte de renováveis) superior a 1.500 MW. O nome desse problema é “estabilidade de tensão”, muito comum em áreas com forte penetração de renováveis, como preconiza o capítulo 3 do livro de Introdutório “Power System Analysis”, do Stevenson.

Por fim, argumentam que as térmicas comprometem as hidrelétricas, com sua capacidade de comercialização. Não é verdade. Essa resposta foi dada por nosso estagiário: as térmicas são despachadas, por razões energéticas, quando não têm água suficiente nos reservatórios das hidrelétricas.

Dessa forma, senhores leitores, a eficácia de um horário de verão para a confiabilidade elétrica e energética é muito discutível, e a visão imediatista de redução de requisitos de geração termelétrica não resiste a nenhuma análise séria de confiabilidade.

Nesse sentido, foi com muita satisfação que assisti a entrevista que o ministro Alexandre Silveira (MME) concedeu ao meu prezado e competente amigo Adriano Pires. Na conversa, Silveira diz, claramente, que não podemos ser radicais na concepção da nossa matriz elétrica e que, inclusive, vamos precisar de mais termelétricas para garantir a nossa segurança.

Portanto, caros leitores, não podemos fazer como na Lapônia, onde o Mágico de Oz, o Espantalho e o Esopo tomam conta de um sistema elétrico imaginário. Vamos partir para a realidade e parar de tentar inventar a roda. Ela já foi criada, tem bastante teoria e conhecimentos dando suporte. É só seguir os “homens dos livros”.

Em conclusão, voltamos a reafirmar:

1. Todas as fontes são importantes na matriz elétrica do Brasil que, aliás, é um país privilegiado pela diversidade de fontes.

2. É pueril adotar uma posição de ódio em relação a qualquer fonte, não levando em consideração aspectos técnicos.

3. As baterias certamente terão papéis relevantes também em uma denominada “matriz de apoio ao sistema”. Estudos têm sido feitos neste sentido.

4. No momento atual da transição energética, as renováveis têm vantagens climáticas indiscutíveis. As hidrelétricas, também renováveis e não intermitentes quando têm reservatório, nos dão a vantagem energética que temos frente ao mundo. As térmicas fornecem segurança eletroenergética e, até a presente data, não têm substituto para tais atributos. Finalmente, mas não menos importante, novos atores como baterias são bem vindos e realmente ajudarão o nosso sistema.

Desta forma, se o sistema for bem planejado e bem operado, conseguiremos atingir o trilema ótimo do setor elétrico: menor impacto ambiental, máxima segurança e menor custo.

O resto é simplesmente o resto. Estamos em uma democracia. Portanto, opinem à vontade, mas com o mínimo de conhecimento técnico, por gentileza.

O artigo foi originalmente publicado neste endereço: https://valordaenergia.com.br/opiniao/o-horario-de-inverno-na-laponia-setor-eletrico-nao-e-um-conto-de-fadas/



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